A Etimologia, um estudo que encanta

Miguel Barbosa do Rosário

Doutor em Letras Clássicas pela UFRJ

Professor de Latim e de Português VII (História da Língua Portuguesa) no Curso de Letras da Universidade Estácio de Sá (Campus Rebouças)

Conferência proferida no dia 28 de agosto de 2002, por ocasião do VI Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no período de 26 a 30 de agosto de 2002

Quando nos deparamos com uma palavra desconhecida, quer na escrita, quer na fala, ocorre-nos, de imediato, o desejo de saber o seu significado. É natural querermos saber o sentido daquela palavra que nos pareceu estranha. Freqüentemente, o contexto em que a mesma foi usada costuma esclarecer o seu sentido. De fato, como afirma Mauricio Gnerre, em seu notável livro, Linguagem, escrita e poder[1]: “as palavras não têm realidade fora da produção lingüística; as palavras existem nas situações nas quais são usadas.”

Elas, as palavras estão armazenadas, guardadas em nossa mente. É o que Carlos Mioto et alii, em seu Manual de Sintaxe[2], chamam de léxico mental. Mioto et alii, em seu Manual, abordam a língua sob a perspectiva da gramática gerativa. Como se sabe, a hipótese gerativista é a de que o ser humano vem dotado geneticamente para o aprendizado de qualquer língua. Para o domínio desta ou daquela língua, basta que a criança ative a dotação genética que recebeu ao nascer. Ninguém precisa ensinar-lhe a falar; ela, de forma natural, com o passar dos anos, em convívio, primeiramente com seus familiares, posteriormente com seus amigos, desenvolverá sua capacidade de expressão oral. Aos quatro, cinco anos, elá terá internalizado as regras gramaticais de sua língua, as quais são processadas de forma inconsciente; essas regras ficam armazenadas em seu cérebro. Condições sociais e econômicas, relações familiares, escolas de boa ou má qualidade permitirão a essa criança a potencialização de seu desempenho lingüístico. Nesse sentido, pois, a criança já vem marcada socialmente, desde o seu nascimento, quanto a esse seu desempenho lingüístico. Alguns conseguem romper esse ferrolho, esse bloqueio. É que a “linguagem”, no entender de Mauricio Gnerre[3], “constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder.”

Independentemente de ser ou não fluente em sua própria língua nativa, independentemente de ter ou não domínio da modalidade culta da mesma, o falante não tem consciência explícita de sua língua. É o que nos diz Waldemar Ferreira Netto[4], em Introdução à fonologia da língua portuguesa: “Ora, os falantes não pensam rotineiramente sobre sua própria língua, eles apenas a usam. É oportuno lembrar, continua o autor, que Bakhtin chamou a atenção para o fato de que o falante não tem consciência da materialidade do sistema. A língua materna é formada só de idéias, só de emoções, pois, segundo ele, “não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis.”

Esse mesmo raciocínio desenvolve Mário A. Perini em Gramática Descritiva do Português[5]: “Deve-se entender a gramática como um conjunto de instruções que o falante da língua domina implicitamente - ele sabe muito bem pô-las em ação, ao julgar a boa ou má formação de uma frase ou de uma palavra. Mas isso não quer dizer que ele tenha consciência dessas instruções, não mais do que tem consciência dos processos de sua digestão ou circulação. É um mecanismo que ele põe em funcionamento de maneira automática.”

De fato, passa despercebido do falante o uso que o mesmo faz da língua. Somente quando se debruça sobre as formas usadas é que o estudioso se depara com a riqueza incomensurável que é o falar humano, quer no nível sonoro, lexical, sintático, semântico.

Notaram que empreguei o termo incomensurável? No processo de elaboração de minhas reflexões sobre a temática proposta, surgiu o termo incomensurável. Sabemos o que significa, mas, muitas vezes, não nos contentamos apenas com o significado, queremos ir além, queremos buscar aquilo que, conforme veremos, ao longo deste trabalho, Guimarães Rosa chamou de caroço, o sentido intrínseco da palavra, o verivérbio.

Examinemos, pois, incomensurável.

Para quem tem o domínio da modalidade culta da língua, não é difícil perceber os elementos constitutivos da mesma, a saber, o radical mensur, que aparece, no verbo mensurar, a vogal temática a, o sufixo formador de adjetivos -vel, e os prefixos in- e co-. Em termos do português atual, paramos por aqui. Não é possível continuar a separação dos elementos, a não ser que se queira voltar no tempo. Se se fizer essa volta no tempo, verificar-se-á que mensurar provém do verbo latino mensurāre, que significa medir, que mensurāre, por sua vez, se prende a mensūra, medida, que mensūra é originário de metiri “medir”, cujo particípio passado é mensus. Além de mensurar, mensura, há, ainda, em português, a forma mesura, originária também de mensūra.

Ao fazermos essas aproximações, estamos investigando a origem da palavra, sua etimologia. Etimologia, palavra de fomação grega significa estudo do verdadeiro, de etimo- “verdadeiro” e -logia “estudo”. Em latim, esse termo foi vertido por Cícero para ueriloquium “maneira de falar verdadeiro”. Em português, o sempre notável escritor Guimarães Rosa, no conto Famigerado, cunhou o termo verivérbio, que traduz exatamente o que se entende por etimologia. Etimologia, pois, é a disciplina que busca estabelecer a origem formal e semântica de uma unidade lexical. É importante frisar que não basta apenas o aspecto semântico, muitas vezes enganador, é necessário também que haja o vínculo formal.

Examine-se, por exemplo, a palavra charme, cuja origem remota é o latim carmen, que tem o sentido de poema, verso, encantamento. O c (k) inicial latino antes das vogais a, o, u, conforme nos explica E. Williams, em Do latim ao português, trad. de Antonio Houaiss[6], evolui para c (k) em português, como em cantare > cantar, colore(m)> cor, cura(m)> cura.

Ao se examinar o sentido de carmen, em latim, verifica-se que um dos sentidos da palavra se manteve na derivada charme. A questão semântica está, então, satisfatoriamente resolvida. No plano formal é que se encontra a dificuldade, já que, como se viu, o fonema c (k) inicial latino evolui para c (k) em português. Esse fato torna evidente que a palavra charme não proveio diretamente do latim. De fato, ela entrou no português através de outra língua, no caso, através do francês charme. Em francês, essa evolução do k para ch, nesse contexto, é regular. É o que se observa, por exemplo, em chefe, proveniente de caput, cher, de caru(m). É necessário, pois, conhecer os mecanismos de evolução histórica da língua para se poderem traçar com segurança as modificações ocorridas ao longo dos tempos.

Veja-se o caso curioso das palavras feitiço e fetiche. Ambas, segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha[7], são provenientes do latim facticiu(m), que significa artificial, não natural. A forma portuguesa feitiço tem sua evolução natural, a partir da vocalização do c, da assimilação do a ao i, a mudança da seqüência -ciu em -ço. Já fetiche, informa-nos A.G.Cunha, é palavra francesa proveniente do português feitiço. Depois de ter contribuído, portanto, para a criação da palavra francesa fetiche, o português recorre ao francês para tomar-lhe emprestado o termo fetiche, que tem traços semânticos que a aproximam de feitiço, mas desta se diferencia por necessidade de especialização semântica.

Além do aspecto semântico e formal, há que se verificar ainda, se possível, em que século ou ano a palavra ingressou na língua. Para feitiço, por exemplo, A.G.Cunha nos informa que sua datação é do séc. XV. Já fetiche aparece registrada pela primeira vez apenas em 1873.

Verifica-se, assim, que, freqüentemente, é possível não só traçar a evolução de uma palavra, determinar-lhe a etimologia, mas também saber-lhe o trajeto cronológico. E com a história da palavra caminha também a história do homem, da sociedade.

Há aquelas que ingressam na língua, mas desaparecem, somem, como aconteceu, por exemplo, com a preposição per, que no português atual só aparece em combinação com o artigo definido o, a, os, as: pelo, pela, pelos, pelas. Parece mesmo que alguns falantes estão perdendo a consciência dessa combinação do artigo com a preposição. Vejamos a seguinte frase: “É esta a nossa fé que nos faz rezar pelos os que o Senhor levou.” Chamou-me a atenção o pelos os, já que o mesmo vem impresso num lembrete de uma Paróquia sobre missa que seria rezada em intenção da alma de uma pessoa. Para o autor da frase, o artigo não está presente em pelos. De qualquer forma, o desaparecimento de per oferece dificuldade em termos de descrição do português atual.

A palavra homem, no português antigo, além de ter o sentido que hoje tem, era um pronome indefinido. Com esse valor, aparece, ainda, na Carta de Pero Vaz de Caminha[8]. Vejam-se as seguintes passagens: “Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar”. (Id., p.47)

“Parece-me gente de tal inocência que se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença”. (Id. ib. p. 54)

“Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram”. (Id. ib. p. 54)

Curioso é observar que, para traduzir a idéia de homem, o latim se serve da palavra uir e homō. Homō tem um campo semântico mais abrangente do que uir. Homō pode incluir a femina “mulher”. É uma palavra que tem a mesma origem de humus terra. Ao pé da letra, portanto, homō é o terrestre, o que habita a terra. Na evolução para o português, deixou-se de aproveitar o termo uir. Lembremo-nos de que uir é o termo empregado pelo poeta Vergílio no início de sua obra épica A Eneida, quando abre seu texto, dizendo “Arma uirumque cano” canto as armas e o varão, isto é, o homem, o herói. Ali, especificamente, o poeta está-se referindo a um homem específico, Enéias. Embora a forma uir tenha desaparecido, ela, no entanto, aparece no derivado viril, em latim uirīle(m). Ao se estudar, então, a etimologia do termo viril, em termos puramente formais e semânticos, bastaria dizer que viril é proveniente do latim uirīle(m). As mudanças sonoras são bem regulares: a consonantização da semivogal u para v, e a queda do fonema e, em posição final de palavra, pois precedido de -l. Mas está-se verificando que não basta um exame apenas formal e semântico para o levantamento etimológico. Para tornar mais rica e fecunda a investigação, é da mais alta conveniência buscar na língua original os mecanismos de relação existentes nas palavras. Passa-se, então, a ter uma visibilidade mais profunda da língua que se examina. E esse é o encanto que se apossa de quem lida com esse campo fantástico da linguagem humana.

Veja-se o termo oral. Oral provém do latim ōrāle(m), que significa relativo à boca. Boca, por sua vez, significa ōs, ōris, forma que desapareceu, na sua evolução para o português e para as outras línguas românicas. Temos, portanto, em latim, o adjetivo ōrāle(m), que pode ser separado em ōr- o radical e -āle(m) o sufixo formador de adjetivos, como o -īle(m) o é de uirīle(m). Em uirīle(m), portanto, registra-se o radical uir- e o sufixo -īle(m), que também é um sufixo formador de adjetivos. Há, pois, todo um jogo nas relações complexas que existem nas línguas, que precisa ser descoberto pelo investigador.

Outra forma extremamente curiosa é a origem do infinitivo do verbo ser em português. Ele surge do verbo sedēre, que tem, em latim, o sentido de “estar sentado”. De estar sentado para ser, portanto, houve uma mudança de sentido muito profunda. O aspecto sonoro é normal: sedēre > seer > ser, ou seja, apócope do -e, síncope do d, porque intervocálico, crase das vogais. Mas se o infinitivo esse foi abandonado, outras formas do mesmo não o foram, como o presente do indicativo, o imperfeito do indicativo, por exemplo, que são provenientes das formas do verbo esse latino.

Certas formas do português atual se tornam bem nítidas, quando se examina seu percurso histórico, como é o caso, por exemplo, dos verbos fazer e dizer, que, provenientes de facere e de dicere, possuem as variantes far e dir no futuro do presente e no futuro do pretérito. De fato, ao examinar as formas far-te-ei e dir-te-ei, não resta ao investigador outra possibilidade de interpretação que não a de analisá-las como variantes do infinitivo fazer e dizer, respectivamente.

No plano histórico, Edwin Williams[9] nos diz: “os infinitivos curtos encontrados em farei e direi originaram-se, provavelmente, em latim vulgar”.

Quero deixar bem claro que não estou advogando aqui a mistura da sincronia com a diacronia. Esse método de investigação proposto por Saussure deve ser preservado.

O exame histórico da língua, no entanto, permite perceber aspectos muito curiosos como a do verbo comedĕre, comentado por Mattoso Câmara[10]. Em comedĕre, o com- é um prefixo, já que existe a forma simples edĕre, que também significa comer. A forma simples edĕre deixou de ser aproveitada, tendo sido inteiramente absorvida pelo verbo comedĕre, cuja evolução em termos sonoros se processa normalmente: a apócope do e, a síncope do d e a crase do e: comedĕre> *comedēre > *comeer > comer. O elemento com-, prefixo em latim, tornou-se radical em português, uma mudança notável.

O latim constitui a base do léxico das línguas românicas. É uma língua bem conhecida e pesquisada. Sob esse aspecto, pois, essas línguas ocupam na etimologia um lugar privilegiado. Muitas vezes, é difícil explicar a seleção vocabular que uma língua faz em relação a determinadas palavras. Em situação bem diversa se encontram o latim e suas línguas irmãs, cuja língua-mãe, o indo-europeu, não deixou vestígios. O indo-europeu, língua hipotética que é, é uma reconstituição a partir do grego, latim, sânscrito, germânico, hitita.

Basta, portanto, dispor de bons dicionários de latim e do conhecimento dos mecanismos de mudanças históricas, para se ter meio caminho andado nesse maravilhoso mundo das palavras. É uma satisfação enorme penetrar no âmago de determinada palavra e, se possível, desvendar todo o mistério que a envolve.

A propósito, de onde vem o termo palavra? Em latim palavra é uerbum. Observem-se as expressões: uerbum Domini “palavra do Senhor”, uerba uolant “as palavras voam”, in principio erat Verbum “no princípio era o Verbo, a Palavra”. Palavra provém de parabola, que, em latim, significa “narração de um acontecimento, envolvendo, alegoricamente, uma instrução”. As mudanças sonoras são regulares: a síncope do o, mudança do grupo bl para br e dissimilação: parabola > paravra > palavra.

Um bom dicionário etimológico nos fornece não só a origem da palavra, mas também a data da primeira entrada na língua. Examine-se, por exemplo, a origem do verbo cuidar, proveniente do verbo latino cogitāre, cujo significado básico era pensar, meditar. As mudanças sonoras são regulares: a queda do e final, a apócope, precedida de r, já que com o mesmo pode formar sílaba, a mudança da consoante surda para sonora, pois está em posição intervocálica, a queda da consoante sonora em posição intervocálica. Sua entrada na língua, conforme informação de A.G.Cunha, se deu no séc. XIII. Proveniente também do verbo latino cogitāre, encontramos a forma verbal cogitar. Ao observarmos atentamente cogitar, verificamos sua enorme semelhança com o latim. Essas formas com formato quase latino são as chamadas formas eruditas. Sua entrada na língua surge, sobretudo, a partir do século XVI, com o movimento da Renascença, quando os eruditos e os escritores retornam ao latim e ao grego para buscarem termos que traduzissem suas necessidades intelectuais. A forma em questão cogitar só entrará na língua no séc. XVII.

Está-se verificando, portanto, que um outro dado importante se apresenta ao estudioso da história das palavras: identificar-lhes seu formato para saber se se trata de uma forma de evolução popular ou não. O conhecimento dos fenômenos presentes na evolução das palavras, repito, se torna imprescindível para entender-se o desenvolvimento do léxico de uma língua.

Examinem-se outros pares em que paralelamente à forma de evolução popular, aparece a forma erudita: dedo / digital [latim digitu(m)], selo / sigilo [latim sigillu(m)], cabelo / capilar [latim capillu(m)], região / regional [latim regione(m)], mão / manual [latim manu(m)], pé / pedal [latim pede(m)], cheio / pleno [latim plenu(m)]. Pode notar-se que todas as formas que se aproximam do latim constituem as formas eruditas.

Além do conhecimento dos mecanismos históricos, há que se levar em conta também outros aspectos que, ao longo dos tempos, foram-se introduzindo na língua. Veja-se, por exemplo, a palavra famigerado utilizada por Guimarães Rosa no conto com esse título, em Primeiras Estórias[11].

Para efeitos de etimologia, basta dizer que famigerado é proveniente do latim famigerātu(m), cujo sentido é famoso, afamado, falado, célebre. A palavra não tem conotação negativa em latim.

Examinei o verbete em cinco dicionários e eis os resultados:

No português atual, seu significado passou a ter um sentido negativo. Na seção de Economia de O Globo do dia 09 do corrente mês (agosto de 2002) diz Joelmir Beting: “As eleições presidenciais acabam de perder peso emocional em nossa famigerada crise cambial.” Ainda em O Globo do dia 10 do corrente (agosto de 2002), na seção Tema em discussão, de Reinaldo Gonçalves, também economista: “O enfrentamento dos problemas financeiros custou dezenas de bilhões de reais ao povo brasileiro em 1995, via o famigerado Proer.” Na crônica O presidente que ri, de Affonso Romano de Sant’Anna, publicada no Estado de Minas Gerais de 25 do corrente (agosto de 2002): “O presidente teve todo o tempo para fazer as famigeradas reformas, e não as fez.”

Para adquirir esse significado, é provável que, ao longo do tempo, os falantes tenham associado o fami de famigerado com o fami de faminto. Note-se que a palavra latina que significa fome é fame(m). A mim me parece uma explicação convincente essa, a de que houve uma associação com faminto para que a palavra passasse a ter um sentido negativo. Essa é a explicação que o Prof. Evanildo Bechara dá em sua Moderna Gramática Portuguesa[12]: “Às vezes a palavra recebe novo matiz semântico sem que altere sua forma. Famigerado, por exemplo, que significa “célebre”, “notável”, influenciado pela idéia e semelhança morfológica de faminto, passa, na linguagem popular a este último significado”. E acrescenta, na mesma página, a nota 2: “A palavra famigerado pode aplicar-se à pessoa notável pelos seus dotes positivos ou negativos; todavia, no uso mais geral, a palavra se aplica às qualidades negativas”.

Em seu sentido original, ela só tem sentido positivo. Examinemos mais detidamente no próprio latim o termo famigerātu(m). Famigerātus, informam-nos os dicionários latinos, é o particípio passado do verbo famigerāre, que significa espalhar, fazer correr boatos. Famigerāre é formado de fama “notícia, boato” e de gerĕre “levar”. Note-se que em latim, quando uma vogal breve passa a ocupar uma posição no interior de um vocábulo, essa vogal no contexto de uma sílaba aberta, isto é, sílaba terminada por vogal, muda para i, como acontece, por exemplo em amicus, inimicus, em que o a de amicus, mudou para i, já que o contexto fonológico passou a ser o descrito há pouco. É o que se chama apofonia.

O fami de famigerāre, portanto, é uma mudança de fama, cujo significado já foi apontado. Se se quiser aprofundar mais ainda no exame da palavra, verificar-se-á que fama é palavra derivada de fari, verbo depoente que significa falar, dizer, forma que aparece também em fabula. Que é fabula? Fabula é uma narrativa. Nossa palavra fala é proveniente de fabula: fabula > fabla > falla > fala. Fabulare dá origem a falar. Fala, falar, confabular, fábula, fama são todas formas em que aparece uma raiz comum, que é fari, já comentado acima.

Ora, Guimarães Rosa se serve do termo famigerado com duplo sentido no famoso conto. O conto é pequeno e vale a pena reproduzi-lo:

Famigerado

João Guimarães Rosa

“Foi de incerta feita - o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse - o oh-homem-oh - com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos - coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela - decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

— “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada...”

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas - e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

— “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra...”

Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara - evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

— “Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado...”

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá:

— “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosta a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

— “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...”

Se sério, se era. Transiu-se-me.

— “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo - o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, do pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?” Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

Famigerado?

— “Sim senhor...” - e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo - apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. - Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

— “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...”

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

— Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...

— “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”

— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

— “Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”

Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor e respeito...

— “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?”

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado - bem famigerado, o mais que pudesse!...

— “Ah, bem!...” - soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — “Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...” — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d’água. Disse: — “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um mero, se tornava? Disse: — “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não...” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca...” Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto”.

O jagunço, ao ser chamado de famigerado pelo homem do Governo, capta-lhe o significado, ele tem a intuição de que não foi algo bom que ele ouviu. Não é, pois, à toa que viaja seis léguas para perguntar ao narrador, o próprio contista, o significado da palavra famigerado. Ele, o narrador, consciente da gravidade da situação, se serve do sentido etimológico da palavra e assim consegue acalmar Damázio, que, mesmo assim, fica um pouco desconfiado, mas acaba desistindo. Vejamos o final:

Disse: — “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não...” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca...”

Observem que o conhecimento etimológico da palavra dá uma amplitude para a compreensão do conto.

O mundo das palavras é assim meio enigmático. A etimologia, aquilo que o narrador do conto chama de verivérbio, ajuda a desvendar-lhe o mistério. Não é o momento de enumerar as palavras criadas pelo autor no conto, mas verivérbio é uma delas. Para essa criação há duas hipóteses: ou o autor criou o termo a partir de outros, como prevérbio, advérbio, provérbio ou foi diretamente à palavra latina ueriuerbium, que significa “veracidade”, formada do adjetivo uerus “verdadeiro” e uerbum “palavra”, ou seja palavra verdadeira. Qualquer que tenha sido a opção, ela lhe pertence e ainda não está dicionarizada.

In principio erat Verbum. E a palavra se faz e a palavra se fez. Era o que eu tinha a dizer-lhes.

[1] GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. SP: Martins Fontes. 2001, p. 19

[2] MIOTO, Carlos et alii. Manual de Sintaxe. Florianópolis: Ed. Insular. 2000. p. 84

[3] GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. SP: Martins Fontes. 2001, p. 22

[4] FERREIRA NETTO,Waldemar. Introdução à fonologia da língua portuguesa. SP: Ed. Hedra. 2001, p. 26

[5] PERINI, Mário A. Gramática Descritiva do Português. SP: Ed. Ática. 2001, p. 52/53

[6] WILLIAMS, E. Do latim ao português. Trad. de Antonio Houaiss. RJ: TB. 1975, p. 71

[7] CUNHA, A.G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. RJ: Nova Fronteira.

[8] PEREIRA, Paulo Roberto. Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do Brasil. RJ: Lacerda Ed. 1. p. 47 e 54

[9] WILLIAMS, E. Do latim ao português. Trad. de Antonio Houaiss. RJ: TB. 1975, p. 212

[10] CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática. RJ: J. Ozon Editor. 1968

[11] ROSA, J. Guimarães. Primeiras Estórias. RJ: Nova Fronteira, 1988, p. 13 a 17.

[12] BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. RJ: Lucerna 2000, p. 400